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Foto: Waldir C. Marinho |
Os
acontecimentos que aqui descrevo me retornam à memória de forma distante, uns
30 anos se passaram, nem lembro das pessoas, mas dos fatos, sensações,
sentimentos. Tomei liberdade em preencher algumas lacunas portanto, mas que não
reduzem a importância da essência aqui exposta.
A
molecada veloz, nem sabia bem pra onde iam, só sei dizer que eu não iria perder
de jeito algum fosse o que fosse, pensei enquanto já voava na mesma direção.
"Pegaram um ladrão", diziam, "lá na esquina", apontavam, corriam,
vibravam.
Ao
chegar pude ver que, além das pessoas que começavam a aglomerar, havia um
policial com uma criança a seus pés. Um menino de pele alva, cabelos lisos, e
suas pálpebras cerradas apenas me permitiam supor seus olhos tristonhos.
Cabisbaixa, quieta, de uns aparentes nove anos, aquela criança era o tal
ladrão.
Percebi
que havia um outro policial numa casa próxima procurando alguma coisa, depois
soube que buscava outro ladrão que talvez estivesse escondido por ali. Logo
localizou o outro bandido, mais uma criança. Este segundo menino, um ou dois
anos mais velho que o primeiro, era negro.
A
história em torno do tal crime que eles haviam supostamente cometido foi
contada por alguns populares, roubaram ou tentaram roubar uma senhora num ônibus,
fugiam correndo pela rua ao ser interceptados pelos dois policiais. Depois
pude notar no chão, próximo a um dos policiais, a arma do crime. Algo que
tentava imitar um pequenino revólver, falso, parecia feito de algum tipo de
resina de cor escura.
Passados alguns momentos, bem ali na frente de todos, os policiais começaram a bater nos
ladrões. Nas crianças. De forma intensa, como se estivessem lidando com adultos. Não havia um motivo claro para bater, não procuravam
obter alguma informação, como por vezes vemos nos filmes, apenas batiam.
Pareciam estar aguardando alguém chegar e, enquanto aguardavam, batiam.
Naqueles
instantes eu notei um fato perturbador, quase que só o menino
negro apanhava. Não que o menino branco não tenha levado algum safanão, levou
sim. Mas nos minutos que ali fiquei creio que só uma vez o menino branco levou
uns tapas. O menino negro apanhou o tempo todo.
A
já grande aglomeração de curiosos no entorno vibrava.
Uns
dez minutos nesta situação e chegou enfim o reforço, um carro da polícia. Os
policiais que pegaram os meninos estavam a pé, deviam estar aguardando por este
carro para levar os ladrões para alguma delegacia, algo assim. Alguns policiais
saíram do carro.
Foi
nesta hora que aconteceu o fato que mais me marcou.
Um
dos policiais que acabara de chegar chamava a atenção por ser muito alto,
grande, o cara era enorme. E ele era negro. Parecia um daqueles jogadores
americanos de basquete. Muito bem, ao sair do carro este policial grandão,
negro, se aproximou do grupo e, sem dizer uma palavra, se dirigiu a um dos
meninos e, abrindo os braços, fechou-os aplicando um golpe com as duas mãos
abertas nos dois lados da cabeça, nos ouvidos do menino escolhido. O golpe foi
com tanta força que fez um barulho muito alto, fazendo a criança gritar e
desabar no chão de dor. Ao ver o menino caído no chão o tal policial negro
enorme começou a chutá-lo, sem dó e sem medidas, chutou e chutou o menino, que
gritava e tentava se proteger da forma que podia com as mãos. O policial
continuou batendo no menino por alguns minutos. Creio que só parou por estar já
meio cansado. E o menino que o policial escolhera 'ao acaso' para bater havia
sido o menino negro. De fato o policial grandão nem tocou no outro menino, o
branco.
E
a torcida no entorno, cada vez maior, continuava a vibrar, como que acreditando
que algum tipo de justiça estava sendo feita.
Creio
que tudo terminou com os policiais colocando os meninos no carro e indo embora.
Aquela situação me incomodou muito, nem sei bem porque fiquei aquele tempo todo
vendo aquilo. Mas foi um aprendizado. Naquele dia eu, com talvez uns 10 anos de
idade, nem lembro bem, cheguei a algumas conclusões.
O
racismo estava presente em nossa sociedade, nu, exposto, sem qualquer pudor ou
censura. E o racismo não tinha cor. E naquela cena a atitude racista me pareceu
ter sido praticada até de forma um tanto, se assim posso dizer, inconsciente,
pelos agressores. Não escolheram conscientemente o menino negro para bater,
simplesmente assim ocorreu, o que é algo ainda mais inquietante.
A
chamada 'justiça' pode adquirir características estranhas. Ali não era motivada
pela justiça que a população vibrava a cada pancada que os policiais davam nos
meninos. E os policiais não batiam em busca da justiça. Os policiais batiam
apenas porque eram superiores, em força física, e pelas circunstâncias, afinal
eles eram a polícia e os meninos os bandidos. O real motivo talvez fosse apenas
esse, batiam porque eram mais fortes, se sentiam superiores, e assim
aproveitavam aquela situação para descarregar nos meninos suas próprias mágoas,
frustrações, dissabores. E a população vibrava pelo mesmo motivo.
A
violência, naqueles momentos, foi algo que iniciou e cresceu, alcançando a
muitos. Começou no assalto, continuou através da polícia, repercutiu na
população. É preciso tomar cuidado, ser vigilante para não se deixar
influenciar por este tipo de coisa. A violência, ou o ódio, pode ser algo
contagioso, naquela ocasião foi o que me pareceu ter ocorrido.
Aquelas
cenas contribuíram para formar em mim uma completa aversão à violência. Ficou
muito claro para mim naqueles momentos que a violência é um erro. Os ladrões,
os meninos, agiram errado, foram covardes, sim, com a senhora no ônibus, mas a
seguir foram tratados também com covardia, a meu ver muito maior, pelos
policiais.
No
momento em que alguém aproveita uma situação de superioridade, qualquer suposta
superioridade, para agir com violência contra outra pessoa numa situação
inferior, mesmo que o agredido tenha cometido algum erro, por mais grave que
seja este erro, independente dos motivos, neste momento esta pessoa que pratica
a violência está errada.
Independente
de quem agride ou de quem é agredido, independente de supostos crimes
praticados por uma ou outra parte, a violência é um completo, absurdo, absoluto, equívoco.