segunda-feira, 14 de maio de 2012

Descobertas


Foto: Waldir C. Marinho


Os acontecimentos que aqui descrevo me retornam à memória de forma distante, uns 30 anos se passaram, nem lembro das pessoas, mas dos fatos, sensações, sentimentos. Tomei liberdade em preencher algumas lacunas portanto, mas que não reduzem a importância da essência aqui exposta.

A molecada veloz, nem sabia bem pra onde iam, só sei dizer que eu não iria perder de jeito algum fosse o que fosse, pensei enquanto já voava na mesma direção. "Pegaram um ladrão", diziam, "lá na esquina", apontavam, corriam, vibravam.
Ao chegar pude ver que, além das pessoas que começavam a aglomerar, havia um policial com uma criança a seus pés. Um menino de pele alva, cabelos lisos, e suas pálpebras cerradas apenas me permitiam supor seus olhos tristonhos. Cabisbaixa, quieta, de uns aparentes nove anos, aquela criança era o tal ladrão.
Percebi que havia um outro policial numa casa próxima procurando alguma coisa, depois soube que buscava outro ladrão que talvez estivesse escondido por ali. Logo localizou o outro bandido, mais uma criança. Este segundo menino, um ou dois anos mais velho que o primeiro, era negro.
A história em torno do tal crime que eles haviam supostamente cometido foi contada por alguns populares, roubaram ou tentaram roubar uma senhora num ônibus, fugiam correndo pela rua ao ser interceptados pelos dois policiais. Depois pude notar no chão, próximo a um dos policiais, a arma do crime. Algo que tentava imitar um pequenino revólver, falso, parecia feito de algum tipo de resina de cor escura.
Passados alguns momentos, bem ali na frente de todos, os policiais começaram a bater nos ladrões. Nas crianças. De forma intensa, como se estivessem lidando com adultos. Não havia um motivo claro para bater, não procuravam obter alguma informação, como por vezes vemos nos filmes, apenas batiam. Pareciam estar aguardando alguém chegar e, enquanto aguardavam, batiam.
Naqueles instantes eu notei um fato perturbador, quase que só o menino negro apanhava. Não que o menino branco não tenha levado algum safanão, levou sim. Mas nos minutos que ali fiquei creio que só uma vez o menino branco levou uns tapas. O menino negro apanhou o tempo todo.
A já grande aglomeração de curiosos no entorno vibrava.
Uns dez minutos nesta situação e chegou enfim o reforço, um carro da polícia. Os policiais que pegaram os meninos estavam a pé, deviam estar aguardando por este carro para levar os ladrões para alguma delegacia, algo assim. Alguns policiais saíram do carro.
Foi nesta hora que aconteceu o fato que mais me marcou.
Um dos policiais que acabara de chegar chamava a atenção por ser muito alto, grande, o cara era enorme. E ele era negro. Parecia um daqueles jogadores americanos de basquete. Muito bem, ao sair do carro este policial grandão, negro, se aproximou do grupo e, sem dizer uma palavra, se dirigiu a um dos meninos e, abrindo os braços, fechou-os aplicando um golpe com as duas mãos abertas nos dois lados da cabeça, nos ouvidos do menino escolhido. O golpe foi com tanta força que fez um barulho muito alto, fazendo a criança gritar e desabar no chão de dor. Ao ver o menino caído no chão o tal policial negro enorme começou a chutá-lo, sem dó e sem medidas, chutou e chutou o menino, que gritava e tentava se proteger da forma que podia com as mãos. O policial continuou batendo no menino por alguns minutos. Creio que só parou por estar já meio cansado. E o menino que o policial escolhera 'ao acaso' para bater havia sido o menino negro. De fato o policial grandão nem tocou no outro menino, o branco.
E a torcida no entorno, cada vez maior, continuava a vibrar, como que acreditando que algum tipo de justiça estava sendo feita.
Creio que tudo terminou com os policiais colocando os meninos no carro e indo embora. Aquela situação me incomodou muito, nem sei bem porque fiquei aquele tempo todo vendo aquilo. Mas foi um aprendizado. Naquele dia eu, com talvez uns 10 anos de idade, nem lembro bem, cheguei a algumas conclusões.
O racismo estava presente em nossa sociedade, nu, exposto, sem qualquer pudor ou censura. E o racismo não tinha cor. E naquela cena a atitude racista me pareceu ter sido praticada até de forma um tanto, se assim posso dizer, inconsciente, pelos agressores. Não escolheram conscientemente o menino negro para bater, simplesmente assim ocorreu, o que é algo ainda mais inquietante.
A chamada 'justiça' pode adquirir características estranhas. Ali não era motivada pela justiça que a população vibrava a cada pancada que os policiais davam nos meninos. E os policiais não batiam em busca da justiça. Os policiais batiam apenas porque eram superiores, em força física, e pelas circunstâncias, afinal eles eram a polícia e os meninos os bandidos. O real motivo talvez fosse apenas esse, batiam porque eram mais fortes, se sentiam superiores, e assim aproveitavam aquela situação para descarregar nos meninos suas próprias mágoas, frustrações, dissabores. E a população vibrava pelo mesmo motivo.
A violência, naqueles momentos, foi algo que iniciou e cresceu, alcançando a muitos. Começou no assalto, continuou através da polícia, repercutiu na população. É preciso tomar cuidado, ser vigilante para não se deixar influenciar por este tipo de coisa. A violência, ou o ódio, pode ser algo contagioso, naquela ocasião foi o que me pareceu ter ocorrido.
Aquelas cenas contribuíram para formar em mim uma completa aversão à violência. Ficou muito claro para mim naqueles momentos que a violência é um erro. Os ladrões, os meninos, agiram errado, foram covardes, sim, com a senhora no ônibus, mas a seguir foram tratados também com covardia, a meu ver muito maior, pelos policiais.
No momento em que alguém aproveita uma situação de superioridade, qualquer suposta superioridade, para agir com violência contra outra pessoa numa situação inferior, mesmo que o agredido tenha cometido algum erro, por mais grave que seja este erro, independente dos motivos, neste momento esta pessoa que pratica a violência está errada.
Independente de quem agride ou de quem é agredido, independente de supostos crimes praticados por uma ou outra parte, a violência é um completo, absurdo, absoluto, equívoco.